Erros semelhantes, mas opostos que os seres humanos podem cometer quanto aos demônios. [C. S. Lewis]
Há dois erros semelhantes, mas opostos que os
seres humanos podem cometer quanto aos demônios. Um é não acreditar em sua
existência. O outro é acreditar que eles existem e sentir um interesse
excessivo e pouco saudável por eles. Os próprios demônios ficam igualmente
satisfeitos com ambos os erros, e saúdam o materialista e o mago com a mesma
alegria.
...algumas
perguntas que tem surgido em várias mentes. A mais comum delas é se eu admito
mesmo a existência do Diabo. Ora, se por Diabo o inquiridor queria dizer a
existência de um poder oposto a Deus e, como Deus, auto existente desde a
eternidade, a resposta é sem dúvida, não! Nenhum ser não-criado existe além de
Deus. Deus não tem nenhum ente que lhe seja oposto. Nenhum ser poderia jamais
alcançar uma tão "perfeita maldade" que se opusesse à perfeita
bondade de Deus. Quando, pois, se tirasse a esse ser oposto todas as espécies
de coisas boas: a inteligência, a vontade, a memória, a energia e a existência
própria, nada mais lhe restaria.
A
pergunta mais cabível é: Se eu admito a existência de diabos. Admito-a, sim.
Isto quer dizer o seguinte: Creio na existência de anjos e admito que alguns
destes, pelo abuso do livre arbítrio, tornaram-se inimigos de Deus e, por
decorrência desse fato, também são nossos inimigos.
A
tais anjos podemos chamar diabos. Não diferem, quanto à essência, dos bons
anjos, mas a natureza deles é depravada. Diabo opõe-se a anjo no sentido em que
dizemos que homem mau é o oposto a homem bom.
Satanás,
o líder ou ditador dos diabos, não é ente oposto a Deus e, sim ao Arcanjo
Miguel. Assim admito, não como se tal coisa constituísse uma parte essencial de
meu credo, mas no sentido de que é uma de minhas opiniões. Minha religião não
cairia em ruínas caso fosse demonstrada a falsidade desta opinião. Até que seja
demonstrada tal falsidade - é difícil serem arranjadas provas de fatos
negativos - prefiro manter minha opinião. Tenho sempre para mim que ela
concorre para explicar muitos fatos. Está em consonância com o sentido claro
das Escrituras, com a tradição do Cristianismo e com o modo de crer da maioria
dos homens, através dos tempos. Além do mais, esta opinião não colide com coisa
alguma que qualquer das ciências tenha demonstrado como verdadeira.
Poderia
parecer desnecessário (mas não o é) acrescentar que a crença na existência dos
anjos, tanto bons como os maus, não significa admitir a forma de sua
representação, quer na arte, quer na literatura. Os diabos são retratados com
asas de morcego e os anjos bons com asas de pássaro, não porque alguém afirme
que a depravação moral haveria de transformar penas em membranas, mas porque a
maioria dos homens gosta mais dos pássaros que dos morcegos. As asas (as quais
nem todos têm) lhes são atribuídas para sugerir a rapidez de energia
intelectual sem impedimento algum. A forma humana lhes é atribuída pelo fato de
que o homem é a única criatura racional que conhecemos.
As
criaturas mais elevadas do que nós na ordem natural, sejam elas incorpóreas ou
sejam dotadas de algum tipo de corpo animado, inacessível à nossa experiência,
tem de ser representadas simbolicamente - ou não seriam jamais representadas.
Tais formas não são só simbólicas, mas sempre foram tidas como simbólicas por
todos os pensadores. Os gregos jamais admitiram que os deuses fossem realmente
tal como seus escultores os representavam, dotados da bela compleição humana.
Consoante a poesia grega, quando um deus deseja "aparecer" a um
mortal qualquer, assume temporariamente a forma de um homem.
A
Teologia Cristã, quase sempre tem explicado os "aparecimentos"
angélicos desta maneira. "Somente os ignorantes" dizia Dionísio no V
século, "sonham que os seres espirituais são realmente como homens
alados".
Nas
artes plásticas, essas representações simbólicas vêm se degenerando
paulatinamente. Os anjos de Fra Angélico estampam nas faces e gestos a paz e
autoridade celestiais. Mais tarde, surgem os anjinhos de Raphael, nus e
rechonchudos. Finalmente, surgem os anjos meigos, delgados e delicados da arte
do século XIX, anjos de compleição tão feminina que só não parecem sensuais por
causa de sua insipidez. São como eunucas frígidas, usadas para o serviço no
Paraíso. Esses símbolos (todos eles) são perniciosos. Nas Escrituras, as
visitações angélicas são sempre alarmantes e assim se apresentavam: "- Não
temas". O anjo da era vitoriana parece dizer com simplicidade: "-
Estou aqui " ou "- Olá, gente".
Os
símbolos literários são ainda mais nocivos por não serem tão facilmente
reconhecidos como sendo simbólicos. Os empregados por Dante são os melhores,
mas em contrapartida, ficamos horrorizados com seus anjos. Seus diabos, como
acertadamente observou o Ruskin, por sua ferocidade, despudor e rebeldia são
muito mais semelhantes àquilo que na realidade deveriam ser do que na
imaginação de Milton. Os demônios pensados por Milton, por causa da majestade e
elevação poética que os adorna, tem causado grandes males (aliás, seus anjos
devem demasiado a Homero e a Raphael).
Entretanto,
a imagem mais perniciosa de todas nos é dada através do Mefistófeles de Goethe.
É Fausto, e não Mefistófeles, quem mostra verdadeiramente o egocentrismo
impiedoso insano e feroz concentrado em si mesmo, que é a própria
característica do Inferno. Mefistófeles, por ser caracterizado como um
espirituoso, civilizado, sagaz e facilmente adaptável, tem colaborado para que
se alimente a falsa ideia de que o mal proporciona (de alguma maneira) a
liberdade, quando já se tornou patente que o que ocorre é justamente o inverso.
Os
homens conseguem evitar a prática de erros cometidos por alguém importante; fiz
o possível para que meu simbolismo não caísse no erro de Goethe, pelo menos,
porque trabalhar com humorismo exige certo sentido de proporção, além da
capacidade de alguém contemplar-se a si mesmo como se estivesse olhando pelos
olhos de outra pessoa externa. Podemos responsabilizar qualquer ser que haja
pecado pelo orgulho por um oceano de culpas, mas não por esta.
Chesterton
disse que Satanás caiu pelo efeito da Força da Gravidade. Podemos imaginar o
Inferno como sendo uma situação em que todos estão preocupados com conceitos
como dignidade e progresso pelos próprios esforços, onde todos se sentem
ofendidos, e se debatem tomados por paixões fatais como a inveja, a vaidade e o
ressentimento. E estes são apenas alguns dos elementos. Admito que prefiro
morcegos do que burocratas. Vivo nesta época de grandes e
"brilhantes" administradores. Os maiores males já não acontecem nos
perversos "redutos criminosos", que Dickens tanto apreciava
descrever. Nem sequer nos hediondos campos de concentração. Nestes campos,
apenas temos visão dos resultados de outros males que foram praticados antes,
causando estes mesmos campos.
A
verdade, porém, é que os maiores males e crimes são criados, arquitetados e
executados em escritórios bem limpos, atapetados, refrigerados e bem iluminados
por homens de colarinho branco, unhas bem cuidadas; estão sempre bem barbeados
e jamais precisam elevar seu tom de voz. Por causa disso, os símbolos que eu
uso para falar do Inferno se originam da burocracia de um estado onde a polícia
domina ou do ambiente característico de escritórios de certos estabelecimentos
comerciais terrivelmente imundos. Acho bem mais concreto e sugestivo.
Milton
diz que "diabo maldito com diabo maldito mantém sólida concordância".
Tudo bem, mas como? Certamente não é pelos laços da amizade ou fraternidade
verdadeiras, pois qualquer ser que possa amar ainda não é um diabo. Mais uma
vez, creio que o Simbolismo que usei pareceu útil, pois me permitiu, por comparações
terrenas fazer uma boa ideia de outra sociedade que só se mantém por causa do
medo e da ambição. Superficialmente, as maneiras são normalmente delicadas,
pois um tratamento rude para com seu superior seria suicídio; e quando um
superior falasse com um subordinado, se o fizesse com rispidez ou rudeza, isto
faria com que os mesmos subordinados ficassem prevenidos antes que o chefe
estivesse pronto para dar a "facada nas costas". Com efeito,
"cobra come cobra" é o princípio de toda a Organização Infernal. Todos
desejam o descrédito, a derrota e a ruína de todos os outros. Em resumo, todos
se tornam especialistas na propagação de falsidade e traição. As boas maneiras,
as expressões de cortesia e os "elogios formais" que trocam entre si
pelos "inestimáveis serviços prestados" são apenas uma casca de todas
estas coisas. De vez em quando, esta casca racha, e então aparece o caldo
fervente de seus ódios de um pelo outro.
O
simbolismo também me permitiu livrar a mente da fantasia absurda de se admitir
que os demônios estão empenhados na busca desinteressada de algo a que damos o
nome de Mal (com letra maiúscula, mesmo). Em meu simbolismo, não haveria lugar
para espíritos tão desfigurados em seus objetivos. Os maus anjos (à semelhança
dos maus homens) tem espírito puramente prático. Eles têm dois motivos para
isso. Primeiro: medo da punição. Assim como os países ditatoriais
(totalitários, se preferirem) tem suas prisões políticas e campos de
concentração, da mesma forma, o Inferno que eu pinto contem Infernos mais profundos,
que funcionam como "casas de correção".
O
segundo motivo vem de uma certa espécie de fome. Imagino que os demônios podem,
no sentido espiritual, devorar-se uns aos outros, e a nós também. Mesmo no
contexto de vida humana, vemos a paixão dominar (quase mesmo devorar) uma
pessoa à outra. Isto faz com que toda a vida emocional e intelectual do outro
seja a tal ponto apagada que se reduz a mero complemento da própria paixão. O
indivíduo passa então a odiar como se o agravo fosse sobre si mesmo, devolver
ofensas como se ele tivesse sido ofendido, enfim, tem sua individualidade
totalmente dissolvida, assimilando desta forma a do objeto de sua paixão.
Embora na Terra chamem isto de "amor", imagino que passe longe do
conceito de amor que Deus nos legou (ver I Co 13).
No
Inferno, identifico este tipo de sentimento com a fome; e neste Inferno, a fome
é mais feroz e a satisfação desta mais viável. Não havendo corpos, o espírito
mais forte pode realmente absorver o mais fraco, deleitando-se assim de modo
permanente na individualidade destruída do mais fraco. E por isso (suponho eu)
que os diabos desejam conquistar espíritos humanos, bem como os espíritos uns
dos outros. Também é por isto que Satanás anseia por todos os membros de seu
exército e por todos que nascem de Eva e mesmo (ainda que pretensiosamente)
pelos exércitos do Céu. O sonho que ele acalenta é o do dia em que tudo esteja
em seu interior, de modo que qualquer um que disser "Eu" só possa
dizer através dele.
Poderíamos
compará-lo à aranha inchada, em contraposição à bondade infinita segundo a qual
Deus torna homens em servos, e estes servos em filhos, de modo a serem no final
reunidos a Ele, não como "almas absorvidas", mas como indivíduos
aprimorados, desfrutadores de todo o deleite e prazer que a presença de Deus
proporciona.
Em
síntese, Deus se compraz em pedir ao homem sua individualidade, mas tão logo o
homem a cede, o maior prazer de Deus é devolvê-la aprimorada. Deus bate à
porta, ao passo que o Diabo a arromba. O Espírito Santo enche, os diabos
possuem.
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Cartas
do Inferno - Prefácio
MAGDALENA
COLLEGE, CAMBRIDGE 18 de Maio de 1960. C. S. LEWIS