Bem-aventurados os misericordiosos
A misericórdia exige um olhar puro.
Onde existe espírito de julgamento e condenação. Onde a pessoa “non grata” é
olhada - superficialmente - a partir de um momento infeliz de sua vida, e não a
partir da plenitude da sua existência e possibilidades, a misericórdia não tem
nenhuma oportunidade de acontecer. Num ambiente crivado de críticas e
julgamentos, só o caos floresce. Só a escuridão frutifica.
É muito fácil apontar o dedo e falar o
que vem na boca. É mais fácil ainda - isso acontece o tempo todo - chamar a
nossa opinião de verdade. Portanto, se desejamos “fazer” alguma justiça,
precisamos primeiro abrir mão das nossas manias e facilidades de julgamento.
Precisamos abrir mão das nossas (supostas) verdades. Deus nos pede isso. Cristo
nos pede isso. (Somos cristãos?). O Espírito de vida, verdade e justiça,
insistentemente, nos pede isso.
Julgar e condenar é próprio do velho
homem, que não conhece a Deus. Amar é próprio do novo homem. Antes de abrirmos
a boca para falarmos isso ou aquilo de alguma pessoa – ou de um grupo de
pessoas – importa-nos nascer de novo. Importa se demorar diante do espelho da
própria consciência. A verdade é que - antes de se enxergar - ninguém enxerga o
outro. E quem se enxerga, não julga ninguém. Por razões óbvias.
Para sermos misericordiosos, precisamos
nos desfazer do espírito de crítica, julgamento e condenação. Precisamos descer
do pedestal da nossa suposta superioridade moral. Precisamos olhar com amor –
afinal é o amor, caso alguém tenha se esquecido, que nos torna reconhecíveis
como seguidores de Cristo. Aquele que não ama não conhece a Deus. Aquele que
não ama não conhece coisa alguma. Aquele que não ama é arrogante, orgulhoso e
só pensa em si. Na linguagem do Apocalipse de João, é cego, surdo, pobre, nu e
miserável.
Saber alguma coisa sobre a vida de uma
pessoa, não é conhecê-la. Conhecer alguém exige mais do que ouvir boatos. As
pessoas só podem ser conhecidas pela via do amor. Tal conhecimento só é
possível a quem se coloca no lugar do outro. Para conhecer o outro não basta
olhar de longe. É preciso se aproximar, ouvir a sua história e se colocar no
lugar dele. É preciso ser misericordioso. A misericórdia abre o nosso coração
para a “verdade verdadeira”, muda o nosso olhar e desfaz os nossos julgamentos
precipitados.
Compreendemos melhor quando abrimos mão
da nossa tendência de julgar. Compreendemos melhor o comportamento e as
palavras das pessoas que amamos. Por isso, o mandamento de Deus não faz rodeio
e vai direto ao cerne da questão: Amar a todos igualmente, inclusive os
inimigos. Porque quem ama – esse é o dom da misericórdia -, compreende a sina
do outro. Pode não concordar com ele, mas o compreende... E ao invés de julgar,
oferece a sorte de uma nova oportunidade de recomeçar a vida.
Quem julga e condena impõe ao outro algo de seu. Deste modo, a verdade sobre a nossa (rápida) tendência para julgar o outro, fala mais sobre nós do que sobre a pessoa que criticamos, julgamos e condenamos. As nossas críticas, julgamentos, implicâncias e "verdades", revelam os nossos preconceitos, intolerâncias, neuroses, traumas e dificuldades de lidar com o que não é parecido com nós. Revelam o quanto nós ainda somos infantis e limitados. Revelam a céu claro, para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, a atrofia da nossa consciência e a angústia - quase escrevi hipocrisia - da nossa alma.
Assim, esvaziar-se completamente dos
nossos preconceitos é o caminho para uma vida de misericórdia, e também um
passo muito importante para começarmos a olhar para nós mesmos, e, quem sabe,
nos tornarmos pessoas melhores. Com efeito, o espírito de misericórdia sempre
nos transforma em pessoas melhores, mais conscientes, mais justas e menos
infantis...
É isso. Bem-aventurados os
misericordiosos, porque eles sabem que não são melhores do que ninguém e
reconhecem que igualmente precisam da misericórdia de Deus e dos seus irmãos de
humanidade.
_VBMello